Pequenos livros, grandes impactos: A terra dá, a terra quer | Resenha sem spoiler

Às vezes eu fico assustada com os calhamaços e confesso que evito eles, não por medo da quantidade de páginas, mas devido ao tempo mais long...


Às vezes eu fico assustada com os calhamaços e confesso que evito eles, não por medo da quantidade de páginas, mas devido ao tempo mais longo de leitura que na maioria das vezes resulta em ressaca literária. Seguindo essa lógica, então podemos dizer que livros curtos funcionam bem comigo, mas não é exatamente assim. Esse ano cheguei a conclusão de que livros pequenos podem causar mudanças gigantes em mim, e foi exatamente isso que A terra dá, a terra quer me trouxe: mudanças. As poucas páginas e vários dias pensando sobre o que havia lido e como minhas vivências se encontrava e desencontrava com o que é retratado no livro. Confesso que já imaginava essa reação e por isso deixei essa leitura para um momento mais tranquilo dos estudos. Durante a graduação me deparei com os escritos e as ideias do autor e tinha certeza que além de gostar muito da leitura, iria pensar bastante sobre o que li, e sei que ainda vou pensar e lembrar muito desse livro.

Em A terra dá, a terra quer, o autor Nego Bispo compartilha suas vivências enquanto um mestre quilombola e como essas vivências partem de um modo de viver, ou melhor, de se relacionar com o lugar e com os seres viventes de onde mora. Entre as observações que o autor traz, está a dissociação vivida nos centros urbanos entre pessoas e lugares, aumentando cada vez mais a distância do que é natural e próprio da região em que se vive, e substituindo por uma importação de modos de viver, alimentar e relacionar que não condiz com a terra onde vivemos. Uma das contraposições presente no livro é a lógica familiar e a relação com a terra, enquanto nos quilombos existem comunidades e confluência de saberes, nos centro urbanos temos uma organização baseada em outros países, uma massificação de modelos importados que não foram pensados para nós, e por isso gera um distanciamento maior.

Um dos encantos dessa leitura foi poder ler algo escrito numa perspectiva contracolonialista. Aqui eu tomo liberdade para explicar brevemente essa questão. Começando pelo colonialismo, que é um sistema de dominação de uma nação subjugando outra de tal maneira que impõem seu modo de viver ao outro. Com certeza a colonização do Brasil veio em mente, né? Quando lemos algo com essa perspectiva colonialista, teremos uma narrativa onde quem coloniza é hierarquicamente superior a outro grupo, essa dualidade envolvendo uma narrativa de poder é a essência da coisa, mas como seria a essência do contracolonialismo? Esse conceito é trazido pelo próprio Nego Bispo e vem em resposta a outro conceito bem conhecido por aí, o decolonialismo. Ambos são uma resposta ao colonialismo, a diferença é que no decolonialismo existe o afastamento do colonialismo e um reencontro com o que somos sem essas referências que foram impostas. No contracolonialismo, essas referências colonialistas nunca aderiram, logo, não tem o que tirar, mas sim uma ameaça contemporânea que pode impactar o sistema contracolonial. Quando pensamos nessa dinâmica do colonialismo, somos automaticamente levados para um período histórico, mas essa leitura foi um lembrete de que ainda estamos sendo alvo desse problema. Nesse ponto eu me conectei a leitura através das minhas vivências enquanto uma pessoa criada dentro dessa influência colonialista, numa cidade grande, mais distante da natureza e sempre sendo lembrada que o progresso vem com asfalto e concreto. Ler sobre uma dinâmica tão diferente da que eu conheço me fez pensar sobre como estamos cada vez mais desconectados de nós mesmos e do que nos cerca, e cada vez mais próximo de uma realidade artificial sem um sentido para além do que entendemos como prático.

Essa leitura me lembrou muito os livros O amanhã não está à venda e Ideias para adiar o fim do mundo do autor Ailton Krenak. Ambos usam desse conhecimento ancestral para compartilhar uma forma de ver o mundo, forma essa que é completamente diferente do que aprendemos nos espaços urbanos, mas é uma maneira muito mais alinhada com uma integralidade entre humanos e natureza, e não essa lógica hierárquica onde nos tiramos da equação natural e vamos destruindo como se não fizéssemos parte do ecossistema, como se não precisássemos para algo tão essencial como viver. Esse livro é uma leitura muito interessante para quem busca ampliar as noções sobre a diversidade sociocultural do Brasil, quem tem interesse em conhecer mais sobre os quilombos fora do recorte histórico, aos interessados em pensar sobre nossa organização social, espacial e familiar, e acima de tudo, quem está disposto a passar pelo incômodo do questionamento e da responsabilidade, afinal, fazemos parte dessa equação. Temos visto e vivido com base no que a terra dá, mas o que ela quer, nós sequer escutamos.

Quero também abrir um espaço para falar como a literatura de não ficção deveria estar mais presente nas nossas leituras. Eu acabo tendo mais contato com esses livros devido às pesquisas acadêmicas, e sempre me questiono o motivo de alguns livros não circularem fora do universo acadêmico. Sei que realmente tem alguns livros que a finalidade é a base teórica, mas existem tantos outros que partem de reflexões ou pesquisas sobre cultura, história e sociedade num geral, que poderiam despertar o interesse de vários leitores. Quando me deparar com mais livros assim, não vou ficar com receio de compartilhar por aqui, e aos poucos alinhar a criação de conteúdo literário com algo que eu vivo diariamente: ao mesmo tempo que literatura não é apenas entretenimento, não ficção tem potencial de entreter.

Vou deixar algumas recomendações de vídeos legais vinculados a leitura, quem tiver tempo e interesse deixa rolando como se fosse um podcast e vamos conversar sobre!

links externos ]

Youtube: Eu não sou decolonial, eu sou contracolonial. Nego Bispo no Instituto Elos ( clique aqui )

Youtube: Confluências: o modo quilombola de vida, e a sociedade no século XIX. Nego Bispo no canal ColaborAmerica TV ( clique aqui )

Youtube: Ciclo e outras economias: Cosmologia do dinheiro com Ailton Krenak e Nego Bispo no canal MUDA Outras economias ( clique aqui )

Substack: Modernidade como violência: A fantasia civilizatória ocidental ( clique aqui )

Substack: A construção da identidade Latino-Americana: branqueamento e demonização dos povos indígenas na arte ( clique aqui )

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